segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A Dialética do Colarinho

Por Gustavo Birenbaum

Chope com colarinho, pra mim, sempre foi uma dessas verdades absolutas que habitam o nosso dia a dia gastronômico. Para mim e para todo mundo de bom gosto que conheço. Realmente, quando a desejada espuma falta por completo, tem-se a impressão de que aquele líquido não merece ser chamado de chope. Um chá gelado de cevada, talvez, ou algo tão insosso quanto isso.



Passeando por Atenas, acabei conhecendo o chope local. Chama-se Alfa, claro. Antes do pedido, lembrei-me de uma crendice segundo a qual onde o vinho é bom a cerveja tende a ser ruim, e vice-versa (alguém conhece uma boa cerveja francesa ou já se aventurou em tomar vinho belga?). Como eu nunca tinha ouvido falar de vinhos gregos (eles não habitam as prateleiras do Zona Sul, fronteira mais distante de todo o meu arsenal enólogo), decidi arriscar minhas papilas gustativas na caneca de 450ml de Alfa. Pelo sim, pelo não, tomei o cuidado de pedir ao garçom para que viesse com colarinho — só que em inglês; em grego, só depois de mais algunas canecas. Imaginei sinceramente que, com minha explicação, o garçom tivesse compreendido que a espuma era uma conditio sine qua non. Minha mulher, mais cética (nessas horas, o desconfiômetro feminino é espantoso), duvidou que o gajo tivesse compreendido a mensagem.

Veio a caneca, com direito a um logo da marca Alfa grafado em grego. Caneca de colecionador. O colarinho, porém, ficou perdido em algum beco de Esparta. Patricia, com ar superior, apenas fitou verticalmente o recipiente, com um olhar enunciativo do famoso “Eu avisei…”. Obviamente o garçom despareceu nos poucos segundos que passaram entre a constatação da total ausência do colarinho (nem aqueles pequenos rastros brancos se viam na vastidão dourada e aquosa) e a manifestação da infalibilidade das premonições femininas. Engraçado foi ver que, à minha volta, pessoas maravilhadas sorviram o mesmo chá gelado de cevada que agora se prostrava na minha frente. (Detalhe sórdido: havia exatos dois dedos sem nada na caneca, certamente para não derramar o líquido no trajeto Extração-Mesa. Mal sabem eles que, até para isso, pode servir o nosso laureado colarinho). Aguardar o garçom voltar e explicar que aquilo não correspondia exatamente ao meu pedido seria inútil e arriscado. Inútil porque nada me garantia que o atendente, agora, entenderia. Arriscado porque, entendendo ou não o meu queixume, sempre existe a chance de um perdigoto ser depositado no produto que repõe aquele antes criticado, pouco importando se a crítica é procedente ou não. (Sim, eu acredito nessas coisas). Sem opção melhor, parti para dentro do Alfa.

Se existe um Deus da cerveja, ou de seus derivados, posso ter perdido alguns pontos com Ele, porque, devo admitir, eu blasfemei aquele líquido. E pus-me a pensar que certas verdades absolutas se esvaziam por completo conforme muda a latitude do observador.

Algum tempo atrás, por exemplo, certos botequins do Rio ofereciam “bolachas” da Brahma que traziam impressas verdadeiras encíclicas sobre a arte do chope em geral e do colarinho em particular: a espessura ideal da espuma, a temperatura adequada para a conservação do líquido, dicas de manutenção da serpentina, os beneficios da cremosidade do produto, noções básicas sobre o lúpulo (esse desconhecido), e por aí vai. Para além de toda essa doutrinação, tenho um grande amigo que reivindica até a autoria de um teste infalível e de facil execução: quebra-se um palito de dente em duas metades (guarde a remanescente para a porrinha); de uma altura de mais ou menos três centimetros deixa-se cair uma dessas metades sobre o creme. Se ela flutuar, touché: seu chope foi “bem tirado”. Se afundar, reprima o responsavel pela extração, sem medo dos perdigotos. Ele haverá de entender (em caso de dúvida, permaneça por perto).

Será que nenhum desses ensinamentos chegou à Grecia? Logo a Grecia, que tantos ensinamentos ministrou a toda a humanidade. Socraticamente, arrisco-me a dizer que determinadas “ciências” não servem para nada quando a sua falta não altera a vida de quem a ignora (meus vizinhos de mesa, por exemplo). Muito abstrato? Nem um pouco. Pense na tecla “Insert”, na qual acabo de esbarrar sem querer e que agora me obriga a reescrever algumas palavras. Qual a serventia da função “Insert”? Alguma ela deve ter — do contrário, não estaria habitando teclados de computador por tanto tempo —, mas confesso que ainda não consegui encontrá-la.

Hoje à noite, para evitar nova rodada de lucubrações inúteis como estas, vou experimentar um tinto da região, que juro nunca ter visto nas gôndolas do Zona Sul.

Beijos e Abraços

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@viverparacomer

2 comentários:

Carol disse...

Muito bom o post!!
Apesar de não gostar de chope, adorei saber da crença de que lugares de bons vinhos não têm boas cervejas (realmente, costuma ocorrer)e da dica do palitinho pra testar o colarinho...rs

alaingles disse...

Nobre post redigido pelo jovem Birenbaum! Fico muito feliz de vê-lo impresso em tela e mais ainda por saber que encontra-se cercado de boas experiências gastronômicas. Ser glutão é um grande diferencial no extenso mundo dos comensais, e esse adjetivo cabe no Gustavo, sem dúvida!

Infelizmente venho desvendar um mistério colocado por ele no que se refere ao mito "...alguém conhece uma boa cerveja francesa ou já se aventurou em tomar vinho belga?". Pois sim, há boas cervejas na França e bons vinhos já são elaborados na Bélgica. Cito a excelente cerveja Kronenbourg 1664, que ganhou em 2004 o prêmio de melhor cerveja do mundo no “Brewing Industry International Awards” (O Oscar das cervejas). O lúpulo utilizado na Kronenbourg é considerado o caviar dos lúpulos. Cultivado exclusivamente na região de Alsace, na França, desde 1885, este lúpulo garante o único e incomparável aroma e sabor da Kronenbourg. Quem gosta de breja mas não conhece tem que provar essa refrescante cerveja.

Sobre o vinho belga, cito a inglesa Jancis Robinson - que é uma das inquestionáveis personalidades do vinho no mundo - "Tive meu primeiro aviso de que o vinho belga não estava de brincadeira quando degustei às cegas um Clos d’Opleeuw Chardonnay 2001, cultivado no oeste de Maastricht, e, com um colega do Master of Wine, acreditei que se tratava de um Puligny-Montrachet (vinho branco francês)."

Fechando meu comentário - que só tem a intenção de esclarecer e contribuir - faço evidência para os excelentes vinhos gregos, especialmente os brancos da uva Assyrtiko elaborados em Santorini. Sem jabá, mas pra quem quiser experimentar, a Mistral traz o Thalassitis Gaia 2005 e o Nótios White 2006 (o segundo usa as uvas Moschofílero e Rodítis do Peloponeso e é financeiramente mais acessível).

Viva a cerveja com colarinho, o vinho e a gastronomia!

Abraços,
Alain

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Olá, sou carioca e um grande apreciador de um bom prato. Com este intuito, tentarei escrever as minhas impressões sobre os restaurantes em que eu vier a comer - descrevendo qualidades e defeitos de cada um. Caso tenha o interesse de complementar as minhas opiniões, por favor, não deixe de contribuir. Restaurantes bons devem ser vangloriados, enquanto restaurantes ruins devem ser evitados. Não concorda? Então, vamos lá... Mãos ao garfo!